15/09/08

O Reino de Deus

No seu livro O Reino de Deus está próximo, João César das Neves analisa a história da humanidade do ponto de vista da nossa relação colectiva com Deus, desde a alta idade média aos nossos dias. Nessa sua análise inclui, para cada século, uma obra que de alguma forma reflecte e resume o essencial desse século. Para o século XX escolheu o filme Jurassic Park.

Ao contrário das outras escolhas, não acho que tenha sido uma escolha certeira. Na minha opinião pessoal escolheria 3 obras diferentes para resumir o espírito do século XX: O Senhor dos Anéis, A Guerra das Estrelas e o Harry Potter. Se tivesse de reduzir-me a uma única escolha seria O Senhor dos Anéis.

Um dos aspectos que une claramente estas três obras é a luta entre o bem e o mal. Aqui há matizes muito diferentes entre as três obras, mas todas reflectem muito claramente a nossa história colectiva do último século. É impossível não reconhecer na Estrela da Morte de Darth Vader a bomba atómica, não reconhecer no racismo dos Devoradores da Morte puros-sangue o racismo nazi, não reconhecer nos estados de alma dos membros da Irmandade do Anel arrancados do Shire para se embrenharem em Mordor os estados de alma dos soldados da Segunda Guerra Mundial arrancados aos campos ingleses para irem combater nos cenários devastadores das trincheiras. E esta é uma questão que também resume o essencial do espírito do nosso tempo. Depois das guerras mundiais passou a ser completamente impossível a noção ingénua de progresso, em que o futuro seria sempre melhor, e a única razão dos males do passado era o atraso tecnológico e a pobreza material. Tornou-se evidente, excepto para alguns cegos voluntários, que o mundo é e continuará a ser o palco de uma luta gigantesca entre o bem e o mal.

Outro aspecto que une estas três histórias é a magia, algo que pode parecer estranho para resumir a essência de uma época tão tecnológica e tão pouco dada ao espiritual, ao transcendente e mesmo ao fantasioso. Mas no fundo, e como se vê claramente na inspiração genial de George Lucas, a tecnologia é apenas uma tentativa diferente de fazer magia. Por mais computadores, lasers, e automatização que tenhamos; o que queremos, no fundo, é obrigar a matéria a obedecer à nossa vontade. Se existir uma força a dominar o mundo nós queremos ser capazes de controlá-la a nosso bel-prazer. O mesmo se passa com o Harry Potter. As histórias são interessantes exactamente porque teria muito mais piada se tivessemos uma varinha e pudessemos mudar o mundo com um feitiço e um agitar da varinha. Em relação ao Senhor dos Anéis, tenho que tirar o chapéu ao Tolkien, porque acho que ele conseguiu levar a história muito mais fundo, colocar realmente o dedo na ferida, e a magia do Senhor dos Anéis faz-nos reflectir muito mais e chegar a conclusões muito diferentes das outras duas obras.

George Lucas consegue fazer-nos pensar na origem do mal (quando vemos o pequeno Anikin, um puto engraçadíssimo, que seguramente nenhum de nós imaginou ao ver a personagem do Darth Vader da trilogia filmada antes) e no que pode causar a reabilitação, o regresso ao bem (a cena final em que Darth Vader dá a vida para salvar o filho).

J. K. Rowling consegue, de forma mais "infantil" (à falta de adjectivo melhor), fazer-nos pensar um pouco no poder salvífico do amor. E na camaradagem. E na origem do mal com os flashbacks sobre a origem de Voldemort. E na morte, que é o grande tabu dos nossos dias, sobretudo em livros para um público infantil/juvenil. E também, através sobretudo de Dumbledore, fazer-nos pensar sobre a paternidade e sobre a misericórdia.

Mas Tolkien leva-nos muito mais longe. Cada vez que o releio encontro novos significados. Tolkien conseguiu encontrar novas formas de exprimir verdades antigas, de forma que se tornam perceptíveis para a grande maioria de uma população cristã de rótulo mas neo-pagã na essência. Podia ficar aqui a elencar os inúmeros simbolismos cristãos da obra. Mas vou apenas chamar a atenção para 3 coisas. A primeira é a tripla representação de Cristo nos seus três atributos de Sacerdote, Profeta e Rei, respectivamente Frodo, Gandalf e Strider. A segunda é a verdade que o mal não pode ser vencido pela força, é demasiado forte e demasiado extenso para isso. Mas o mal acaba por destruir-se a si mesmo. Foi o que aconteceu ao ser destruído o anel na lava. E foi o que aconteceu na cruz de Cristo. A brutalidade dos guardas, o calculismo de Pilatos, a hipocrisia dos fariseus, a traição de Judas, a cobardia dos outros apóstolos, a indignidade de Herodes, a ingratidão da multidão são uma manifestação extremamente clara do mal. E culminou na derrota desse mal, que nunca poderia ter sido tão completa sem essa manifestação em toda a sua força. E foi o que aconteceu no nosso século: as guerras mundiais foram consequências de nacionalismos parvos que já existiam há alguns séculos, mas que nunca se tinham manifestado em toda a sua força e maldade. E foi depois dessa manifestação do mal em toda a sua força que foi possível escrever a declaração dos Direitos do Homem, lançar as bases da União Europeia, começar a tratar os judeus como nossos irmãos. Finalmente, o anel é um símbolo perfeito da luta que vivemos: só podemos realmente atingir a vitória quando desistirmos do poder do anel. Quando desistirmos de ter o poder. Porque o que mais caracteriza este século que passou, na relação da humanidade com Deus, e por conseguinte na própria história da humanidade foi o regresso em toda a pujança da tentação antiga: Sereis como Deuses. O nazismo, o comunismo, as guerras mudiais, a guerra fria, as outras guerras mais pequenas e as tragédias em pequena escala que acontecem em cada família, em cada escola, em cada local de trabalho, em cada alma, geralmente têm a ver com isto. Queremos o poder de transformar o mundo à nossa vontade. Na ilusão de que isso nos faria felizes. Não faz. Faz com que nos destruamos uns aos outros fisicamente, e que nos destruamos a nós próprios no nosso interior.

O que nos faz felizes é outra coisa. É a doação genuína e generosa de nós próprios. E é o acolhimento do dom que os outros nos fazem a nós. A felicidade não se conquista, acolhe-se.

Estou aqui Senhor, quero ser feliz. Se vai ser preciso aceitar que passes a ser Tu a controlar a minha vida e a fazer-me feliz, ajuda-me que isto não vai ser fácil.

Venha a nós o Vosso Reino! Que as nossas vidas se transformem no plano de Amor que Tu tens para nós, em vez de serem esta batalha fraticida em que nos envolvemos aos tentarmos concretizar cada qual os seus planos pessoais. Que sejamos capazes de aceitar que o Rei és tu, e não nós.

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